terça-feira, 19 de julho de 2011

No País das Máscaras

Era uma vez um país do mundo das fábulas onde as pessoas não tinham rosto próprio, mas apenas uma massa informe e branca com dois buracos para ver, umas narinas para captar os cheiros e uma boca de lábios curvilíneos donde nasciam as palavras. Todos refletiam o mesmo tom terroso, a mesma capa fértil de reprodução industrial, numa arrojada antecipação da moderna clonagem. 

Por serem tão iguais, sobretudo as mulheres, aquele organizado punhado de gente começou a perder os sonhos, pois até as palavras pareciam sempre as mesmas, bastando para tanto o fato de terem procedência da mesma boca, palatos e lábios idênticos, cordas vocais com a mesma dimensão e grau de afinação. Criança que estivesse para nascer, fazia-o no meio da maior solidão, já que mãe e parteira mais não viam que o sexo do nado-vivo e nem sequer um débil sorriso de encantamento se esboçava, pois cada traço novo repetia o velho e em nada o novo ser surpreendia... 
Mas havia no reino alguém cujo negócio esmorecia, por falta de clientela interessada, desnecessárias que eram as maquiagens, tintas e unguentos, já que mesmo maquiadas as pessoas mantinham o mesmo enfadonho padrão estético e nada que pusessem no rosto, sobretudo as mulheres, faria esvoaçar a imaginação mais aguçada.  Por isso o feiticeiro do reino, temendo a falência, resolveu investir na modernização do visual daquele povo e em rápida e discreta viagem que fez ao reino vizinho, para lá do lago dos encantamentos, pôs à disposição da população ensimesmada na sua profunda depressão, a possibilidade de variar, encantar, surpreender e encontrar novo interesse pela vida: máscaras!  Logo no primeiro dia, o sucesso ultrapassou todas as expectativas do velho feiticeiro e as vendas dispararam astronomicamente, numa euforia só equivalente à das manhãs da Bolsa, em dias de alta. Brevemente viu que teria de se expandir, começando a criar ele próprio as suas máscaras, rudimentares que haviam sido as do reino vizinho...
Criou então a sua linha eternamente jovem e desenvolveu a linha sóbria para os mais retentivos às modas. Mais tarde fez furor a linha sofisticada, inspirada nos maiores galãs e estrelas de cinema do país distante, onde dizem que se fabricam os sonhos... Abriu, entretanto lojas por todo o reino, com empregadas risonhas ostentando os rostos mais encantadores que a memória coletiva do país dos sonhos pudera reter. Não foi preciso muito tempo para as suas belas caras adquirirem um tom mais natural que o autêntico, numa sábia mistura de ervas, barro e pétalas de flores. As ruas dos burgos e aldeias enfeitavam-se de seres siderais, mulheres flutuantes saídas do sonho, cobertas de luz, devoradas pelo olhar febril de atraentes homens, cuja juventude, ou falta dela, só era traída por um andar menos ágil...  Todos passaram a sonhar e a acreditar na vida e o mundo ganhou em interesse e espanto, aquilo que antes perdera em alegria e desafio quotidiano. Tudo agora se resumia ao negócio das máscaras e a economia conheceu aquele falacioso apogeu das cidades assentes em estacas apodrecidas...  Havia, porém uma nota dissonante... Acabara para sempre a fidelidade e contenção daqueles homens e mulheres tão recatados e ninguém já se abstinha da sua segura aventurazinha, a coberto de uma máscara que no dia seguinte até podia desaparecer no fundo do lago encantado. Algumas decepções, porém, podiam ocorrer, mas até isso deixou de ter importância. Nem sempre a máscara correspondia em beleza à frescura e firmeza das carnes ocultas por sobre as roupas. Mas valia a pena o risco, porque o corrupio continuava e cada decepção anunciava o novo desafio da descoberta. Além disso, a aquisição de novas e mais insinuantes máscaras só fazia progredir a economia daquele país esquecido e que agora conhecia fama mundial pelas suas imagens de sonho, exportadas muito para além-lago.
Contudo... Havia um homem que se recusou a aderir àquele  estranho festival e se transformou no céptico do reino, bardo que ninguém queria ouvir, porque a sua voz trazia o inconforto da verdade e o seu rosto lembrava os antigos tempos do desencanto.  Procurava este homem por todos os cantos do reino algum eco para a sua voz, mas sempre lhe respondia o canto das sereias emplumadas e dos homens com elas embevecidos. Aspirava a um mergulho breve nas águas da autenticidade e era vê-lo noite adentro, de vela em punho, pelas ruas iluminando rostos e decifrando traços para encontrar atrás deles alguém com o velho padrão da pureza inicial. Mas só via perfeição, tanta perfeição e delírio que preferiu refugiar-se nas cavernas mais recônditas do reino, onde passava dias à fio a mirar a sua própria sombra em frente a um muro pleno de lagartixas e outros bichos rasteiros.  Os anos foram passando e o nosso eremita foi envelhecendo, ganhando esbranquiçadas cãs, a palidez dos hospícios e também uma poeira interior feita das teias amargas, que a solidão nele foi lentamente tecendo. Recordava o insano cheiro das fêmeas, a doçura das carnes, a magia dos seus sorrisos, sempre iguais embora, os seus passos ondeantes, a vertigem dos corpos esbeltos onde o desejo se fincava por ser de tudo o mais primitivamente igual.  E foi então que desceu à cidade, na demanda de uma mulher que, com os atavismos próprios da essência, o fizesse reencontrar o sonho... 
Mas ao aproximar-se do burgo, deparou com um autêntico festival carnavalesco de ruas enfeitadas de máscaras, de festões de máscaras, de árvores ostentando figurações de máscaras e... de lojas repletas de cartazes promocionais de... máscaras. Por qualquer razão perversa que escapava ao seu entendimento, o meio transformara-se em fim. Como se a esfera da vida se tivesse desviado para a vivência única do momento presente, num exigente imperativo do prazer imediato, desvirtualizado ainda assim, caótico, desorganizado, desesperado... Perante o seu espanto, pelas ruas divagavam imagens enxovalhadas de pessoas com máscaras, lágrimas secas à sua superfície encardida, mulheres dançando nuas as cantigas de outros tempos e das casas pouco limpas escorria uma nostalgia sem tréguas... Pisando máscaras, pontapeando os destroços e excrescências da humana dissipação, vai contra o corpo franzino de uma criança, votada a um choro manso e cadenciado, a máscara abandonada à sua beira. Limpa-lhe uma lágrima e reencontra na doçura do seu rosto o cunho do padrão inicial e, sem mais dizer, leva-a para a sua caverna onde a provisão de frutos secos ainda perdura. Reconfortado o estômago de calor humano e de humano sustento, a pequenina adormece. 
Então, o eremita desce de novo à cidade e tira a máscara ao primeiro homem que encontra. Vê outro e tira-lha também. Abraça uma mulher e retira-lha com toda a doçura... Vai depois de rosto em rosto desvendando e libertando um a um daquela carga. As pessoas ficam a olhá-lo despertas do seu sonho desencantado e quando a chuva começa a cair, diluviana, a enxurrada arrasta consigo o mar de máscaras e o que delas resta para as entranhas do lago do desencanto... Depois, apenas depois, o homem rumou para a sua caverna e preparou-se para dormir e sonhar finalmente o seu sonho de pureza, consubstanciado na esperança daquele respirar doce de criança. 

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