segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O Missionário de Alexandria

         Antão viveu o seu retiro solitário no deserto durante oi­tenta e poucos anos.  Não que ele desprezasse a vida, dom de Deus; muito menos desprezava o homem, a criatura mais perfeita criada por Deus à sua imagem e semelhança.  Ele foi para o de­serto por livre escolha: não fugiu de nada nem de ninguém.  Sua opção foi totalmente positiva. Fazia os maiores esforços rumo à perfeição. Ele queria atingir a perfeição da obra-prima de seu Criador: “Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá tudo aos pobres, e depois vem e segue-me” Mt 19,21.  Para realizar esta verdadeira revolução na sua vida, ele precisava vencer as inclinações menos nobres que sentia dentro de si, e domi­nar seu corpo, que só pedia conforto, prazeres, etc.  E para dominar o corpo e vencer aquelas inclinações, ele só enxer­gava um instrumento de alta eficiência: a renúncia, a penitência.  Por isso, Antão se desfez de todos os seus haveres, deu tudo aos pobres e partiu para o deserto.  Lá ele travaria a grande ba­talha contra as inclinações menos nobres e passaria a domar o seu corpo animal.  Antão não buscava destruição, ele perseguia a perfeição.  E conseguiu o seu intento.  Pode-se argumentar: ele poderia conseguir o seu objetivo sem tanto rigor, usando outros processos.  Certamente que sim: poderia ter tomado outros caminhos.  Porém, foi o caminho da renúncia e da penitência o que ele escolheu.  Aliás, alguém já disse que, sempre que indivíduos ou grupos de indivíduos tentaram erguer-se acima do nível da natureza comum, escolheram a solidão como seu novo lar, fizeram da abstinência e da pobreza real seu novo modo de vida.  E Ernesto Bertram afirma que os pioneiros, os exploradores, os inventores, os reformadores sociais, todos eles insistem em suas autobiografias e confissões que o pré-requisito de toda a verdadeira grandeza é a solidão, a pobreza, a humildade; e tudo isso faz parte de uma forma monástica de vida. 
         Foi então o deserto o grande cenário e a grande testemunha dessa verdadeira epopéia religiosa que foi a vida do grande e extraordinário Antão.  Devido à sua experiência de vida santa no deserto, mesmo sem contar com os atuais meios de comunicação, sua fama ia se espalhando por toda parte: Bispos, padres, peregrinos de todos os lugares e até o Imperador Constantino e seus filhos, como já vimos, iam em busca de seus conselhos. 
Durante o longo período fora da convivência da sociedade, nosso herói teve oportunidade de se encontrar várias vezes com os homens, porém, houve dois encontros que Antão teve com a sociedade que assumiram maior importância. Isso aconteceu por duas vezes, quando ele deixou o deserto e foi a Alexandria, como missionário.
         Antão deixou o deserto pela primeira vez quando já tinha completado 61 anos. Alguns cristãos o chamaram para confortar e encorajar seus irmãos, que estavam sendo perseguidos, presos, torturados, e por fim martirizados, por ordem do Imperador Maximino Daia, que queria forçar os cristãos prisioneiros a negar e abjurar o único Deus verdadeiro e prestar culto aos falsos deuses romanos.
         A princípio, Antão não queria deixar o deserto e negou-se a interromper o seu retiro, porém, depois resolveu atender ao pedido de seus irmãos, os cristãos de Alexandria, dizendo ao emissário: “Diga-lhes que eu irei”.
         Tendo como única veste uma túnica surrada, na mão direita um pesado e grosseiro cajado, barba longa e cabelos desgrenhados, Antão deixou o deserto e entrou na cidade de Alexandria sob a admiração e respeito de todos.  Era a primeira vez que ele via uma cidade grande.  Até então, a única povoação que ele conhecera tinha sido a sua pequena Coma.
         Logo ao chegar a Alexandria, Antão se dirigiu aos seus irmãos sofredores. As prisões onde estavam os cristãos, esperando a hora do martírio, eram fortemente guardadas por guardas vigorosos e carcereiros desumanos, que mantinham uma forte vigilância sobre os prisioneiros.  Ninguém tinha permissão para entrar, porém, os guardas não conseguiam impedir o estranho ancião de entrar e sair quando queria e saudar os fiéis com o então proibido sinal-da-cruz.  Quando se aproximava a estranha figura de Antão, tendo no rosto uma expressão de serenidade triunfante, os guardas enchiam-se de respeitoso temor e em vez de detê-lo, afastavam-se para um lado e deixavam-no passar.  E Antão levava a seus irmãos na fé, o conforto e a Palavra de Deus que lhes foram negados por tanto tempo, pois seus padres estavam na prisão, fechados estavam seus lugares de encontro e de oração e seus escritos sagrados queimados em público.  E Antão dizia aos prisioneiros: “Sede fortes na fé!  A vitória é vossa, pois, dentro em breve, vossas cadeias serão partidas; gozareis da glória celeste”.  E àqueles que eram condenados a trabalhos forçados, o santo do deserto dizia: “Sede perseverantes!  Vossa marcha para o exílio vos conduzirá ao triunfo e à vitória!” Os olhos dos prisioneiros cristãos tornavam-se brilhantes e, cantando, partiam felizes como quem caminha para uma jornada de prazer e alegria, de glória e vitória. Quando os prisioneiros eram levados para o lugar da execução, a fim de serem martirizados, Antão dizia: “Vamos também nós tomar parte no combate, ou pelo menos, presenciar a vitória dos combatentes.” Ele tinha grande desejo de sofrer o martírio, porém, não querendo entregar-se, para não desobedecer às autoridades religiosas, servia aos confessores da fé, nas prisões e nas minas. Em fins do século II, a excessiva exaltação do martírio, relacionada em parte com a crença na iminência da Parusia (Volta gloriosa de Jesus, no final dos tempos), e sobretudo impulsionada por toda uma literatura em torno do martírio e dos mártires, havia criado uma “mística do martírio”. Às vezes, apresentavam-se cristãos, em grupos, espontaneamente, perante os prefeitos, para serem julgados, pois desejavam ser martirizados. Isso levou a Igreja a intervir, proibindo a apresentação voluntária dos cristãos, às autoridades.
         Quando os prisioneiros eram chamados para serem julgados, Antão posicionava-se com entusiasmo no tribunal, estimulando a fidelidade dos cristãos e escoltando-os, quando iam para o mártírio, ficando junto deles até que expirassem. Por isso o juiz, vendo sua intrepidez e a de seus companheiros e seu zelo nestas coisas, deu ordem para que nenhum monge aparecesse no tribunal ou ficasse na cidade, quando houvesse julgamento. Todos julgaram conveniente esconder-se nesses dias; Antão, porém, não se preocupava com essa ordem do juiz. No momento do julgamento, vestido com uma branca pele de carneiro que descia até os pés, à maneira de um civil egípcio, mudando sua aparência monástica, talvez como disfarce, colocava-se à frente de todos, num lugar proeminente, à vista do prefeito. No entando o disfarce de Santo Antão não era muito eficaz, pois, o prefeito sempre o reconhecia, ainda que não o prendesse. Enquanto todos se admiravam e o prefeito mesmo o via ao aproximar-se com todos os seus funcionários, ele estava ali de pé, sem medo, solidário, transmitindo força e coragem aos seus irmãos cristãos, que estavam sendo julgados. Como já disse antes, orava para que também ele pudesse ser martirizado, sem violar a legislação eclesiástica e, ao mesmo tempo, penalizava-se por não ter sido mártir.
          Passado o momento culminante e mais doloroso daquela perseguição, Antão regressou para o seu retiro do Monte Pispir, com o propósito de nunca mais deixar o deserto.
         No entanto, as coisas não aconteceram como ele pensava, pois, alguns anos antes de sua morte, Antão voltou a Alexandria, e desta vez a pedido de seu ilustre amigo e discípulo, Atanásio.  Ele foi levar aos Bispos, o apoio de seu prestígio pessoal, auxiliando-os no combate ao Arianismo, em defesa da verdadeira fé; foi prestar seu apoio à verdadeira fé, na luta contra o Arianismo; foi para afirmar, contra os arianos, que Jesus é verdadeiro Filho de Deus, portanto Deus também com o Pai e o Espírito Santo; foi para exortar os cristãos a se manterem fiéis à doutrina do Concílio de Nicéia, que afirmava a divindade de Cristo.  O Concílio de Nicéia foi o primeiro Concílio Ecumênico e realizou-se no ano 325, em Nicéia da Bitínia, na Ásia Menor, atual Turquia Asiática.
         É que, por aqueles dias, estava se espalhando por todo o Oriente,  uma heresia, ou seja, uma falsa doutrina, que negava a divindade de Jesus. Era o “Arianismo”, e assim se chamava porque tinha como principal defensor um presbítero de Alexandria, chamado Ario e consistia numa tomada de posi­ção em torno de uma controvérsia a respeito da natureza de Cristo: “Jesus é verdadeiramente Deus, assumindo forma huma­na, ou simplesmente um homem que atingiu perfeição quase di­vina?”  O Arianismo afirmava que Ele era apenas um homem, com qualidades e dotes excepcionais, que tinha atingido uma perfeição quase divina, era um Deus criado, um ser ‹‹intermediário›› entre Deus e o homem. E essa doutrina estava se espalhando por toda parte.
Reunidos em Nicéia, os Bispos conciliares responderam a essa heresia que estava nascendo, preparando e fixando o ‹‹Símbolo da fé›› que, completado mais tarde pelo primeiro Concílio de Constantinopla, permaneceu na tradição dos cristãos católicos e ortodoxos e na Liturgia, como o “Símbolo niceno-constantinopolitano”. Neste texto fundamental, que expressa a fé da Igreja, e que recitamos ainda hoje, em alguns domingos, na Celebração Eucarística, encontra-se a palavra grega “homooúsios”, em latim, “consubstancialis”, que, traduzida para o português, quer indicar que o Filho é da mesma substância do Pai, é Deus de Deus, é a sua substância; e assim é posta em realce a plena divindade do Filho, que tinha sido negada pelos arianos.  
Santo Atanásio se sentia impotente para conter o avanço dessa nova heresia, pois, àquela altura, já muitos Bispos, padres, o povo em geral, e mesmo o Imperador eram partidários do Arianismo.  Então, Santo Atanásio se lembrou de recorrer ao testemunho de Antão, que tinha conhecido, por experiência, a divindade de Cristo, quando Este lhe falara por ocasião de uma visão de luz sobrenatural.  E foi para o santo do deserto que o grande Bispo Atanásio apelou naquela hora de grande aflição, pois, na verdade, Antão era um testemunho vivo da divindade de Cristo, era assim a pessoa mais importante na defesa da fé de Santo Atanásio.
Desde que Antão saíra de Pispir, praticamente ninguém sabia onde ele se encontrava. E nessa incerteza saíram alguns emissários de Atanásio, em busca de um homem que decidira viver isolado, ninguém sabia onde, nem mesmo os seus amigos. Era uma aventura difícil, quase impossível, mas eles não perde­ram a esperança.  A ordem era encontrar e trazer o santo do de­serto. Na caminhada tiveram que vencer muitos obstáculos. De quando em vez, encontravam outros eremitas em suas cabanas, porém nada sabiam informar.  Até que, por fim, encontraram-no, graças às informações de um beduíno.  Este se lembrara de que já há muito tempo, quando ainda era criança, acompanhando seus parentes pelo deserto, à procura de novas pastagens para seus rebanhos, tinham levado consigo um velho silencioso que havia ficado no sopé de uma montanha.  E o beduíno os condu­ziu ao lugar tão procurado e desejado.
Antão já tinha quase 90 anos.  Sua barba branca como a neve, chegava até os pés.  E Macário, um dos emissários, já conhecido de Antão, disse-lhe: "A Igreja do Senhor vos chama para dar testemunho da divindade de Cristo”.  Antão era filho obediente da Igreja e os pedidos dela eram ordens para ele.  Os emissários explicaram o que estava acontecendo, porém, Antão não podia entender como se podia negar a divindade de Cristo.  Para ele era mesmo que negar o brilho do sol.  E ele exclamava: "Ora, ora!  Eles não vêem?"  E se recusava a partir.  De repente, Antão se lembrou de um sonho que tivera certa vez: ele via um altar, cercado por jumentos que tentavam derrubá-lo.  E quando os emissários de Atanásio quiseram novamente explicar-lhe a heresia, ele exclamou: "Vocês não precisam mais explicar nada.  Já compreendi tudo: os jumentos estão tentando derrubar o al­tar.  Eu irei”.
Antão já tinha conhecimento da heresia e detestava o Arianismo. Exortava a todos que o procuravam a não se deixarem contaminar pelas idéias dessa nova e perversa crença que estava aparecendo. Certa vez, quando alguns desses ímpios arianos chegaram a ele, interrogou-os detalhadamente; e ao aperceber-se de sua ímpia fé, expulsou-os da montanha, dizendo que suas palavras eram piores que veneno de serpentes.
Quando numa ocasião, os arianos espalharam a mentira de que Antão partilhava de suas idéias, ele demonstrou que estava enojado e irritado contra eles.
Respondendo então ao chamado de Atanásio, de outros bispos e de todos os irmãos, Antão desceu a montanha. Ele e os emissários iniciaram sua viagem para Alexandria. Era já o ano 338. Chegando à cidade, por onde o santo eremita passava, despertava admiração e reverência.  Já velho, de aspecto majestoso, avançava Antão, acompanhado por dois discípulos.  Todos tinham a impressão de que um santo caminhava pelas ruas de Alexandria. A cidade parou.  Todos iam ao seu encontro, pois ninguém queria perder o espetáculo da passagem de um santo.
Entrando em Alexandria, logo começou a ensinar que o Arianismo era a pior de todas as heresias e dizia ao povo que o Filho de Deus não é uma criatura, nem veio "da não existência" ao ser, mas "é Ele a eterna Palavra e Sabedoria, da mesma substância do Pai". Por isso é ímpio dizer: “houve um tempo em que não existia”, pois a Palavra foi sempre coexistente com o Pai. E dizia ao povo: “Não se metam em nada com estes ímpios arianos. Não pode haver comunidade entre a luz e as trevas (2 Cor 6,14). Vocês devem se lembrar que são cristãos, tementes a Deus, ao passo que eles, ao dizerem que o Filho e Palavra de Deus é uma criatura, não se diferenciam dos pagãos, que adoram a criatura em lugar de Deus Criador (Rm 1,25). E estejam seguros de que toda a criação está irritada contra eles, porque contam entre as coisas criadas, o Criador e Senhor de tudo, pelo qual todas as coisas foram criadas".
Todo o povo se alegrava ao ouvir aquele ancião anatematizar a heresia que negava a divindade Cristo. Toda a cidade corria para ver Antão. Também os pagãos e inclusive seus assim chamados sacerdotes iam à Igreja dizendo: "Vamos ver o homem de Deus", pois assim o chamavam todos. Além disso, também ali o Senhor operou, por seu intermédio, expulsões de demônios e curas de doenças mentais. Muitos pagãos queriam também tocar o ancião, confiando que seriam auxiliados; e na verdade houve tantas conversões nesses poucos dias, como não tinham sido vistas em todo um ano.
Seus companheiros de viagem pensaram que a multidão o incomodava e por isso trataram de afastá-la dele, mas, sem se molestar, Antão dizia: "Toda esta gente não é mais incômoda do que os demônios, contra os quais tivemos que lutar na montanha".
Antão não chegou à Igreja de repente, inesperadamente. Sua che­gada era aguardada com ansiedade. Diante da Igreja de Alexan­dria estava reunida uma grande multidão: Católicos, judeus, pagãos, heréticos, todos querendo ouvir as palavras que o santo do deserto iria pronunciar.
Na Igreja, já estavam presentes o Arcebispo, os padres e o povo.  Antão foi recebido e colocado em lugar de destaque.  Começou a celebração e na hora do sermão, o Arcebispo Ata­násio, a certa altura, fez a profissão de fé na divindade de Cris­to.  Do meio do povo surgiu então o protesto de alguns.  Antão fi­cou espantado e perguntou a seu discípulo Macário o que esta­va acontecendo.  Depois de ser devidamente informado, Antão se ergueu ao lado do altar, e exclamou em alta voz: “Eu O vi”.  E todos os que se encontravam no templo, sem esperar nenhuma decisão do Arcebispo, caíram de joelhos e repetiam baixinho e emocionados: “Ele O viu, ele viu o próprio Senhor”.  E ninguém mais ousava duvidar. Até mesmo os heréticos se arrependeram, pois estavam diante do testemunho de alguém que tivera uma expe­riência direta, pela visão, da própria divindade de Cristo. E o Ar­cebispo continuou a Santa Missa, agora sem protestos.
A tarefa de Antão em Alexandria estava cumprida.  Agora devia voltar para o deserto.  Ainda insistiram para que ele permanecesse um pouco mais, porém ele disse: “Peixe fora d’água morre.  O mesmo acontece com o monge fora de seu recolhimento.  Por isso, como deve o peixe apressar-se em entrar n’água, devo eu voltar depressa para a montanha”.
O Arcebispo Atanásio acompanhou Antão até a saída da Cidade. Ao despedir-se, ofereceu-lhe, em sinal de amizade e gratidão, o seu manto episcopal.  Por onde o santo ia passando, o povo levava crianças e doentes para que ele os abençoasse.
Tendo assim cumprido a sua missão, voltou o missionário de Alexandria e peregrino da paz, para o seu recolhimento, agora no Monte Colzin, no deserto da Tebaida.  

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