segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Orientador e guia espiritual de outros monges

         Muito do que eu vou dizer neste capítulo e no capítulo seguinte é quase uma cópia textual do que escreveu Santo Atanásio na biografia que fez de Santo Antão.
A partir de um certo momento, atendendo a um desejo de peregrinos que o visitavam, Antão abandona a solidão e se torna conselheiro e pai espiritual, já que muitos admiravam e desejavam imitar sua santa vida. Chegou mesmo a induzir muitos a abraçar a vida monástica. Foi então que o deserto se povoou de monges que abandonavam os seus e se inscreviam como cidadãos do céu (Hb 12,23).
      Certa vez, vieram alguns monges e pediram que lhes falasse sobre as virtudes e sobretudo sobre a renúncia. Queriam também que lhes falasse um pouco de suas lutas contra as tentações e como vencê-las.  E Antão, entre outras coisas, começou a lhes falar, em língua copta:
“Para começar, tenhamos todos o mesmo zelo e perseverança, para não renunciar ao que começamos, para não perder o ânimo, para não dizer: 'Passamos demasiado tempo nesta vida ascética'. Não, começando de novo cada dia, aumentemos nosso zelo. Toda a vida do homem é muito breve, comparada ao tempo vindouro, de modo que todo o nosso tempo é nada, comparado com a vida eterna. A Escritura diz: 'Ainda que alguém viva setenta anos, e o mais robusto até oitenta, a maior parte é fadiga inútil' (Sl 89,10). Se, pois, vivemos todos os nossos oitenta ou mesmo cem anos na prática da vida ascética, não iremos reinar no Reino dos Céus, na glória futura, o mesmo período de cem anos, mas, em vez dos cem, reinaremos para sempre. E ainda que nosso esforço seja na terra, não receberemos nossa herança na terra, mas, como nos foi prometido, no céu. Mais ainda, ‘vamos abandonar nosso corpo corruptível e recebê-lo-emos incorruptível’ (1Cor 15,42).
Assim, filhinhos, não nos cansemos, nem vamos pensar que estamos fazendo algo extraordinário. Pois ‘os sofrimentos da vida presente não podem comparar-se com a glória futura que nos será revelada' (Rm 8,18). Não olhemos tampouco para trás, para o mundo, crendo que renunciamos a grandes coisas, pois também o mundo é muito trivial, vulgar, comparado com o céu. E ainda que fôssemos donos de toda a terra e renunciássemos a toda ela, nada seria isto, comparado com o Reino dos Céus. Assim como uma pessoa desprezaria uma moeda de cobre para ganhar cem moedas de ouro, assim o que é dono de toda a terra e a ela renuncia, dá realmente pouco e recebe cem vezes mais (Mt 19,29). Se, pois, nem sequer toda a terra equivale ao Céu, certamente o que entrega uma porção de terra, não deve penalizar-se. O que abandona é praticamente nada, ainda que seja um lar ou uma soma considerável de dinheiro, aquilo de que se separa.
Devemos, além disso, ter em conta que se não deixamos estas coisas por amor à virtude, teremos de abandoná-las depois, de qualquer modo e freqüentemente também, a pessoas às quais não teríamos querido deixá-las, como nos recorda o Eclesiastes (2,18; 4,8; 6,2), Então, por que não transformar a necessidade em virtude e entregá-las de modo a podermos herdar um reino por acréscimo? Por isso, nenhum de nós tenha nem ao menos o desejo de possuir riquezas. De que nos serve possuir o que não podemos levar conosco? Por que não possuir antes aquelas coisas que podemos levar conosco: prudência, justiça, temperança, fortaleza, entendimento, caridade, amor aos pobres, fé em Cristo, humildade, hospitalidade? Uma vez possuindo-as, veremos que elas vão adiante de nós,  preparando-nos as boas-vindas na terra dos mansos (Lc 16,9; Mt 5,4).
Com estes pensamentos, cada qual deve convencer-se de que não deve descuidar-se, mas considerar-se servo do Senhor e preso ao serviço de seu Mestre. Um servo, porém, não se atreve a dizer: ‘Já que trabalhei ontem, não vou trabalhar hoje’. Tampouco vai se pôr a calcular o tempo em que já serviu e descansar durante os dias que lhe ficam pela frente; não, dia após dia, mostra a mesma boa vontade para que possa agradar a seu patrão e não causar nenhum incômodo. Perseveremos, pois, na prática diária da vida ascética, sabendo que se somos negligentes um só dia, Ele não nos vai perdoar, em consideração ao tempo anterior, mas vai aborrecer-se conosco, por nosso descuido. Assim o ouvimos em Ezequiel (Ez 18,24-26); assim Judas, numa só noite, destruiu o trabalho de todo o seu passado.
Por isso, filhos, perseveremos na prática do ascetismo e não desanimemos. Também nisso temos o Senhor que nos ajuda, diz a Escritura: 'Deus coopera para o bem de todos os que o amam' (Rm 8,28). E quanto a não devermos descuidar-nos, é bom meditar no que diz o Apóstolo: 'Morro cada dia' (1Cor 15,31). Realmente se também nós vivêssemos como se cada novo dia fôssemos morrer, não pecaríamos. Quanto à citação, seu sentido é este: ao despertarmos cada dia, deveríamos pensar que não vamos viver até à tarde; e de novo, quando vamos dormir, deveríamos pensar que não chegaremos a despertar. Nossa vida é insegura por natureza, e diariamente nos é medida pela Providência. Se com esta disposição vivemos nossa vida diária, não cometeremos pecado, nada cobiçaremos, não nos mancharemos com ninguém, não acumularemos tesouros na terra, mas, como quem, cada dia, espera morrer, seremos pobres e perdoaremos tudo a todos. Desejar mulheres ou outros prazeres desonestos, tampouco teremos semelhantes desejos, mas voltar-lhes-emos as costas como coisas transitórias, combatendo sempre e tendo ante os olhos o dia do juízo. O maior temor ao juízo e o desassossego pelos tormentos dissipam invariavelmente a fascinação do prazer e fortalecem o ânimo vacilante.
Agora que temos um começo e estamos no caminho da virtude, alarguemos ainda mais nosso passo para alcançar o que temos adiante ( Fl 3,13). Não olhemos para trás, como o fez a mulher de Lot (Gn 19,26), sobretudo porque o Senhor disse: ‘Quem põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o Reino dos Céus’ (Lc 9,62). E este olhar para trás não é outra coisa senão arrepender-se do que foi começado e lembrar-se de novo do que deixara no mundo.
Quando ouvirem falar da virtude, não se assustem nem a tratem como palavra estranha. Realmente não está longe de nós, nem seu lugar está fora de nós, mas, está dentro de nós, e sua realização é fácil, contanto que tenhamos vontade (Dt 30, 11ss). Os gregos viajam e cruzam os mares para estudar as letras; nós, porém, não temos necessidade de pôr-nos a caminho pelo Reino dos Céus, nem de cruzar o mar para alcançar a virtude. O Senhor no-lo disse de antemão: 'O Reino dos Céus está dentro de vós' (Lc 17,21). Por isso, a virtude só necessita de nossa vontade, já que está dentro de nós e brota de nós. A virtude existe quando a alma se mantém em seu estado natural. É mantida nesse estado natural quando permanece como veio a ser. E a alma veio a ser limpa e perfeitamente íntegra. Por isso Josué, o filho de Nun, exortou ao povo com estas palavras: 'Mantenham íntegros seus corações diante do Senhor, o Deus de Israel (Jos 24, 23); e João: 'Endireitem seus caminhos' (Mt 3,3). A alma é reta quando a mente se mantém no estado em que foi criada. Mas, quando se desvia e se afasta de sua condição natural, isso se chama vício da alma.
A tarefa não é difícil. Se ficamos como fomos criados, estamos no estado de virtude; mas, se entregamos nossa mente a coisas baixas, somos considerados perversos. Se esse trabalho tivesse de ser realizado de fora, seria em verdade difícil; mas, estando dentro de nós, acautelemo-nos contra os pensamentos maus. E tendo recebido a alma como sendo confiada a nós, guardemo-la para o Senhor, a fim de que Ele possa reconhecer sua obra, tal qual a fez”.
Quanto a suas experiências com os demônios e à maneira de combatê-los, Santo Antão, entre outras coisas, disse-lhes:
“Enquanto o Senhor estiver conosco, nossos inimigos não nos causarão dano. Pois, quando vêm, atuam como nos encontram; e, no estado de alma em que nos encontrem, apresentam suas ilusões. Se nos vêem cheios de medo, de pânico, imediatamente tomam posse como bandidos que encontram a praça desguarnecida. Se nos vêem temerosos e acovardados, aumentam nosso medo o mais que possam, em forma de imaginações e ameaças, e assim a pobre alma é atormentada para o futuro. Se nos encontram, porém, alegrando-nos no Senhor, meditando nos bens futuros e contemplando as coisas que são do Senhor, então, vendo a alma salvaguardada com tais pensamentos, envergonham-se e voltam atrás. Assim, quando o inimigo viu Jó fortificado, retirou-se dele, enquanto que encontrando Judas desprovido de toda defesa, aprisionou-o.
Por isso, se quisermos desprezar o inimigo, mantenhamos sempre nosso pensamento nas coisas do Senhor e que nossa alma goze com a esperança (Rm 12,12). Veremos então como os enganos do demônio se desvanecem como fumo e vê-lo-emos fugir em lugar de perseguir-nos. Eles são, como disse, covardes, sempre receosos do fogo preparado para eles” (Mt 25,41).
Enquanto Antão discorria sobre esses assuntos, todos se regozijavam com eles. Aumentava em uns o amor à virtude, em outros desaparecia a negligência, e em outros era reprimida a vanglória. Todos prestavam atenção a seus conselhos sobre os ardis do inimigo, e admiravam-se da graça dada a Antão pelo Senhor, para discernir os espíritos.
Para todos os monges que chegavam até ele, tinha sempre o mesmo conselho: “pôr sua confiança no Senhor e amá-lo, guardar-se a si mesmo dos maus pensamentos e dos prazeres da carne, fugir da vanglória e orar continuamente, cantar salmos antes e depois do sono, guardar no coração os mandamentos propostos nas Escrituras e recordar os feitos dos santos, de modo que a alma, ao recordá-los, possa inflamar-se ante o exemplo de seu zelo”. Aconselhava-os sobretudo recordar sempre a palavra do Apóstolo: "Que o sol não se ponha sobre vossa ira" (Ef 4,26), e a considerar estas palavras como ditas em relação a todos os mandamentos: o sol não se deve pôr não apenas sobre nossa ira, como sobre nenhum outro pecado.
Dizia ainda Antão: “É inteiramente necessário que o sol não nos condene por nenhum pecado cometido durante o dia, nem a lua por nenhuma falta noturna. Para assegurar-nos disso, é bom ouvir e guardar o que diz o apóstolo: ´Julguem-se e provem-se a si mesmos´ (2 Cor 13,5). Por isso, cada um deve fazer diariamente um exame do que fez de dia e de noite; se pecou, deixe de pecar; se não pecou, não se orgulhe disso. Persevere antes na prática do bem e não deixe de estar em guarda. Não julgue o próximo nem se declare justo a si mesmo, como diz o santo apóstolo Paulo, ‘até que venha o Senhor e traga à luz o que está escondido’ (1 Cor 4,5; Rm 2,16). Muitas vezes não temos consciência do que fazemos; nós não o sabemos, mas o Senhor conhece tudo. Por isso, deixando a Ele o julgamento, compadeçamo-nos mutuamente e ‘levemos as cargas uns dos outros’ (Gl 6,2). Julguemo-nos a nós mesmos e, se nos vemos diminuídos, esforcemo-nos com toda a seriedade por reparar nossa deficiência. Que esta observação seja nossa salvaguarda contra o pecado. Anotemos nossos atos e impulsos da alma como se tivéssemos de informar a outro. Podem estar seguros de que, em razão da vergonha de que isto seja conhecido, deixaremos de pecar e de prosseguir com pensamentos pecaminosos. Quem gosta que o vejam pecando? Quem, depois de pecar, não preferiria mentir, esperando escapar assim de que o descubram? Assim como não quiséramos abandonar-nos ao prazer, à vista de outros, assim também se tivéssemos de escrever nossos pensamentos para dizê-los a outro, muito nos guardaríamos de maus pensamentos, por vergonha que alguém os soubesse. Que essa informação escrita seja, pois, como os olhos de nossos irmãos ascetas, de modo que, ao nos envergonharmos de escrever como se nos estivessem vendo, jamais nos demos ao mal. Modelando-nos desta maneira, seremos capazes de ‘levar nossos corpos a obedecer-nos’ (1 Cor 9,27), para agradar ao Senhor e calcar aos pés as maquinações do inimigo".
 Estas palestras de Santo Antão, como outros discursos espirituais que Santo Atanásio coloca nos lábios de seu biografado, refletem a sabedoria experimental dos monges, como também as reflexões e sabedoria pastoral do patriarca alexandrino, de maneira que, lendo as preleções de Santo Antão, ficamos conhecendo também o pensamento de Santo Atanásio.
Terminando este capítulo, ficamos a pensar e interrogar-nos:  Estas preleções e conselhos são mesmo de Santo Antão ou de Santo Atanásio?  Pois é na “Vita Antonii” escrita por Santo Atanásio que encontramos todos estes ensinamentos cheios de sabedoria.

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